23.10.06

personagem


ele me fez atravessar o longo corredor, mas não escreveu que no final haveria uma porta para que eu fugisse. ele me fez escancarar a boca até o fim, mas esqueceu de me dar o grito.

14.10.06

de um apartamento do 8° andar


a vida me incomoda como o som de unhas que arranham a lousa sem parar. que vão e voltam pelo quadro negro provocando um arrepio permanente. tortura insuportável, a vida. por isso, eu levantaria ainda mais os muros. fecharia com tijolos as janelas. encostaria o armário pesado atrás da porta. apagaria as luzes pra não enxergar o espelho. pele suja. poros entupidos pelo que vem da cidade imunda. sinais no canto da boca, pelos sorrisos sem vontade. me incomoda, a vida. a repetição do trabalho. o apertar de parafusos para criar uma peça que eu nunca desejei. por isso, eu me trancaria para sempre. pra morrer sozinho. na minha bipolaridade. paranóia. esquizofrenia. no meu transtorno obsessivo compulsivo. no meu déficit de atenção. hiperatividade. pra morrer sozinho em um ataque do coração a três passos da gaveta de tarjas pretas. anestésicos. analgésicos. antidepressivos. relaxantes musculares. anti-hipertensivos. comprimidos. amarelos pra cabeça. vermelhos pro estômago. azuis para o pau. inalantes. ansiolíticos. anfetaminas. misturaria tudo para evitar essa morte lenta que me embrulha o estômago. a vida insuportável que no máximo provoca um vômito no meio da madrugada. fast-food no chão do banheiro. suor frio na volta pra cama. pra dormir duas horas, antes do tudo-de-novo. eu trancaria as portas pra morrer sozinho no aperto do apartamento do oitavo andar. mordendo as bochechas por dentro. abafando os gritos no travesseiro pra não incomodar. pra ser encontrado apenas semanas depois. debaixo das patas dos meus gatos imundos. famintos, atrás de comida, mas me rejeitando pelo gosto amargo. a vida me incomoda como o som de unhas arranhando a lousa sem parar. um ruído já permanente. a cada dia mais rápido. a cada dia mais alto. você ouve?