18.12.06

sujeira


eu me esfrego, mas não sai. eu queria tirar de mim esse cinza da cidade poluída, que ficou no meu corpo, mas eu não consigo. não sai. eu me esfrego, eu me escovo, eu quase me derreto debaixo dessa água. no vapor que esconde os espelhos mas não sai. eu não consigo tirar de mim os restos desta tarde quente e infernal. de luzes piscando, enfeites dourados, árvores gigantes. corredores cheios. crianças prendendo a minha saia. esbarrando nas minhas pernas, sem querer, puxadas pelas mães com pressa. pelas mães megeras e ásperas. recusando presentes, doces, sorvetes. fazendo promessas em troca de silêncio. de choro engolido. não sai. eu esfrego a minha cabeça, puxo os meus cabelos, mas essas imagens não vão embora. eu fecho os olhos e vejo anjos, trombetas. eu vejo laços. fitas. isopor barato caindo do céu. eu esfrego a minha cabeça e as imagens continuam dentro dela. fecho os olhos e vejo velhos gordos, suados, com suas barbas postiças, desgrudando do rosto por causa do calor. por causa das crianças chorosas e amontoadas, disputando um lugar sobre seus joelhos. eu sinto o cheiro acre de suas roupas vermelhas e encardidas até agora. é por isso que eu me esfrego. me arranho. por isso que quase arranco a minha pele, na teimosia da esponja. sob o quente do chuveiro. mas não sai. restos, resquícios, vestígios. eu tenho rastros desta tarde infernal, absorvidos pelos meus poros. eu tenho impurezas correndo por dentro. a imundice da cidade e sua gente nojenta pelo meu corpo. sorrisos forçados. falsos abraços. alegrias de plástico. tudo dentro. eu tenho esse cinza que não sai e eu me esfrego. me desinfeto. eu arranco pêlos, pele. me sangro e tudo fica. carne viva e não sai. eu queria tirar de mim as marcas desta tarde, mas eu não consigo. eu deveria ter ficado em casa. trancada. janelas fechadas. cortinas cerradas, pra não ver o cinza escuro da cidade sujando o vidro. pintando os prédios. se espalhando pelos muros. tingindo o céu e contaminando os que andam pelas calçadas. eu me esfrego e tenho nojo da água que escorre. do caldo que vai pelo ralo. não sai. e é por isso que eu quase me derreto com essa vontade de me virar do avesso. de lavar todos esses cantos de mim.

7.12.06

toque


“a linguagem é como uma pele: esfrego minha linguagem no outro. é como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras.”

roland barthes