31.1.06

excesso


descobri que era frágil, como porcelana, apenas quando me deparei com os cacos espalhados pela sala. com você quebrada, em dezenas de pedaços coloridos. em alguns sumidos pelos cantos, debaixo dos móveis. atrás das cortinas. sob o tapete. eu fechava você, entre os dedos, lhe apertava no meio das mãos, sem saber que toda a força poderia ter outro efeito. como quando exageramos na quantidade de água, achando que o transbordar do vaso fortalece a planta. esquecendo que o encharcar da terra apodrece o broto. enfraquece a raiz. eu tentei lhe proteger, sem lembrar que precisava de ar, na caixa fechada. no escuro do papelão. tentei fazer com que fosse só minha, esquecendo que a estrela conserva a beleza, mas morre quando é tirada do mar. eu precisei que você quebrasse, pra saber que amor demais também pode matar.

23.1.06

dança


não foi de repente. eu fui matando um por um, aos poucos. a cada dia. devagar. por isso, não estranho o salão vazio. as mesas, com arranjos de plástico, rodeadas por cadeiras desocupadas. as velas, intocadas, fazendo poças de cera sobre as toalhas. por isso, não estranho a orquestra de vinil tocando apenas pra que eu ouça. não estranho o eco feito pelos meus sapatos. dois pra direita. um pra esquerda. dois. um. eu danço sem par por ter matado todos os que tive. não espero convidados por ter eliminado um por um. aos poucos. eu hoje festejo minha estupidez. seguro uma taça no lugar da pedra que sempre carreguei. faço um brinde à minha impaciência. à incapacidade de suportar a tolice, a ignorância, a burrice. um brinde à minha falta de prática com os sorrisos falsos. à minha incompetência pra suportar situações que não desejo. lugares que me contrariam. opiniões que não peço. vozes que não gostaria de ouvir. dois. um. eu danço sozinho por ter vomitado as pequenas gentilezas que me ofereceram. os favores recebidos de quem nunca pedi. eu danço sozinho e não estranho o silêncio no intervalo entre as músicas. a festa vazia não me surpreende. eu matei um por um. com meus olhares. gestos. com a saliva respingada dos meus berros. gritos. palavras certeiras como flechas. assassino, eu matei um por um. com minha ausência nas celebrações. com minha aversão a rituais. com meu isolamento. com minha falta. o meu não ir. com meu afastamento. danço e não espero mais ninguém pra girar debaixo das luzes coloridas. no ritmo da música da orquestra de vinil. foram todos mortos, os que já encheram o salão. um por um. aos poucos. por mim. sem arrependimento pelos crimes, não estranho o vazio. me contento com a solidão transformada em companhia. a ela estendo a minha mão e convido. dança comigo? com ela festejo minha estupidez. taça no lugar da pedra. um brinde. um giro. dois pra direita. um pra esquerda. dois. um. dois. um.
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"dança" foi escrito para o tudo lorota, mas por problemas com o servidor, só deve ir ao ar na semana que vem. resolvi antecipar por aqui.

18.1.06

caos


não tranquei as portas, nem fechei as janelas. que entrem os pássaros na casa abandonada. que invadam a cozinha. quebrem os copos, batendo suas asas. que entrem na sala. rasguem os sofás com suas bicadas. revelem a espuma sob o tecido. que entrem no quarto escuro. façam seus ninhos entre os travesseiros. no quente da cama desarrumada. que se escondam entre os livros da estante empoeirada. nos vãos. que entrem os pássaros e vasculhem as gavetas. que levem meus escritos, como pombos-correio. meus rascunhos do lixo. as portas estão abertas. assim como as janelas. que entrem os pássaros e transformem em caos a vida pacata deixada pra trás.

13.1.06

castigo


eu continuo aqui. apesar de ter enchido a lousa com a mesma frase, de ponta a ponta. de cima até embaixo, ouvindo risadas e cochichos. sujando de giz as pontas dos dedos. a mão. o uniforme. pagando o castigo com as bochechas vermelhas. suando por dentro. vergonha. eu permaneço aqui. com o gosto de sabão na boca lavada. com o amargo do palavrão tirado na marra. eu continuo no mesmo lugar. joelho marcado no milho. palma da mão roxa de régua. orelha torcida. tudo pago e eu aqui. esquecido. de cara pro canto. nariz na parede. e esse medo de me virar e ter certeza de que todos foram realmente embora.

11.1.06

arte


"a arte é uma vida elevada. ela traz uma felicidade mais profunda e um desgaste mais acelerado. grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais e, com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir"

[thomas mann em morte em veneza. relido esta semana]

1.1.06

metades


porque, há muito, eu erro a mão. a dose. esqueço a receita do equilíbrio. o quanto uso das partes que brigam dentro de mim. há muito, eu me confundo. porque metade não tem medo e levanta os braços, na descida da montanha-russa. olhos abertos, enquanto outra acha melhor enfrentar a queda com as mãos na barra. segurando forte. espremendo os dois olhos, fechados, desde o começo do percurso. metade prefere brincar na beira da praia. no raso. enquanto outra não vê problemas em pular dezenas de ondas e nadar onde a pequena bandeira vermelha, agitada pelo vento, avisa sobre o risco. sobre o possível afogamento. porque, há muito, eu erro a receita do equilíbrio. uso a parte que não deveria na hora em que não poderia. me confundo com as metades que brigam dentro de mim. porque parte acelera na estrada, no momento da curva fechada. pé direito até o fim, enquanto outra freia, bruscamente, ao ver a primeira placa. seta torta, avisando sobre o perigo. metade não suporta a burrice, a pequenez, a lerdeza. outra, sempre calada, tolera a banalidade. engole a ignorância. convive com a mediocridade. há muito, eu erro a mão. a dose. me confundo com o que devo usar. porque metade briga. explode. dedo apontado na cara, enquanto outra se recolhe, quieta, debaixo da cama. no quarto fechado. no tudo escuro. metade berra. outra sussurra. tenho uma parte que acredita em finais felizes. em beijo antes dos créditos, enquanto outra acha que só se ama errado. tenho uma metade que mente, trai, engana. outra que só conhece a verdade. uma parte que precisa de calor, carinho, pés com pés. outra que sobrevive sozinha. metade auto-suficiente. mas, há muito, eu erro a mão. a dose. esqueço a receita do equilíbrio. me perco. há dias em que uso a metade que não poderia. dias em que me arrependo de ter usado a que não gostaria. porque elas brigam dentro de mim, as metades. há algumas mais fortes. outras ferozes. há partes quase indomáveis. metades que me fazem sofrer nessa luta diária. no não deixar que uma mate a outra.